
Manuel Mariño
Porque devem as cooperativas ter um tratamento fiscal diferente das outras empresas
A questão do imposto sobre o rendimento das cooperativas tem sido objeto de ampla discussão há algum tempo nos meios de comunicação, em congressos e ao nível do poder executivo em vários países da América Latina e Caribe. Muitos argumentos apresentados nessas discussões são baseados numa profunda ignorância sobre o que realmente são as cooperativas, sua identidade e seus princípios e valores.
"O regime tributário tornou-se um tópico de importância significativa para as cooperativas nas mais diferentes partes do mundo. A preocupação baseia-se no aumento da carga tributária à qual essas entidades estão sujeitas. Existem várias razões que explicam essa situação: por um lado, a necessidade de cobrir deficits fiscais crescentes, com a consequente necessidade de aumentar as receitas públicas e, por outro, a tendência de considerar as cooperativas apenas mais uma forma de organização empresarial, sem ter em consideração suas características económicas e jurídicas específicas. A verdade é que - especialmente nos últimos anos - parece ter sido desencadeada uma espécie de perseguição fiscal contra as cooperativas, que não reconhece precedentes, ocorrendo mesmo em países onde tradicionalmente as cooperativas tinham um tratamento tributário favorável, o que requer uma análise adequada da situação com o objetivo de buscar uma solução que leve em consideração a natureza específica das cooperativas" [1].
O ATO COOPERATIVO
A Lei-Quadro para Cooperativas na América Latina [2] estabelece em seu artigo 6 que as cooperativas serão regidas pelas disposições da Lei, suas normas regulatórias e, em geral, pelos princípios do Direito Cooperativo. Eles serão complementados pelo Direito Comum na medida em que seja compatível com sua natureza. Da mesma forma, define Direito Cooperativo como o conjunto de regras especiais, jurisprudência, doutrina e prática com base nos princípios que determinam e regulam as ações das organizações cooperativas e os sujeitos que delas participam.
A mesma Lei-Quadro, em seu artigo 7, apresenta a seguinte definição: "Atos cooperativos são aqueles praticados entre cooperativas e seus membros ou por cooperativas entre si, em conformidade com seu objetivo social e estão sujeitos ao Direito Cooperativo", com a seguinte justificativa:
"Uma noção fundamental que vem ganhando espaço na legislação e doutrina nos últimos anos é a do "ato cooperativo" - diferente do ato comercial e de outros atos jurídicos - que este artigo incorpora. O conceito incluído é limitado aos atos praticados entre cooperativas e seus membros ou por cooperativas entre si, sempre em conformidade com seu objetivo corporativo, mas existem outras posições jurídicas e doutrinárias que dão à noção um escopo mais amplo, incluindo, por exemplo, operações com não-membros e até mesmo todos os operações que as cooperativas realizam para cumprir seu objetivo corporativo e, principalmente, o ato constitutivo, entendendo-o como o primeiro ato cooperativo que gera todos os demais, postulando-se que os atos de mercado praticados pela cooperativa, realizados em conformidade com seu objetivo corporativo, vinculado à atividade dos sócios e em seu nome, não implica renda, cobrança ou qualquer vantagem patrimonial para a própria cooperativa.
Para esclarecer, como efeito fundamental, esses atos estão sujeitos ao Direito Cooperativo, que limita a aplicação de outras figuras ou normas legais estranhas ao caráter cooperativo. Em todos os casos, a relação membro-cooperativa é regida pelo Direito Cooperativo, que é particularmente importante no caso das cooperativas de trabalhadores, a fim de evitar dúvidas sobre essa relação."
Essa caracterização do ato cooperativo reconhece um conceito já contemplado em várias leis cooperativas da América Latina e Caribe. O ato cooperativo é a noção legal que define a atividade das cooperativas e, por natureza, é essencialmente diferente do ato comercial, típico da economia com fins lucrativos, do ato administrativo de direito público, do ato civil, etc. Ele dá um caráter distintivo às cooperativas, o que justifica que elas sejam regidas pelo Direito Cooperativo, um ramo de Direito formado pelas leis cooperativas, suas disposições regulamentares e as regras estabelecidas nos estatutos. A natureza distintiva das cooperativas como organizações que definem sua atividade com esse tipo de ato, justifica que sejam reguladas por um órgão regulador próprio e autossuficiente e que outras normas legais que não sejam concebidas de acordo com sua natureza sejam aplicadas apenas de forma suplementar.
Este mesmo capítulo da Lei-Quadro inclui algumas regras criadas principalmente para promover o fortalecimento comercial das cooperativas. Por exemplo, está previsto que as cooperativas prestem serviços a não membros, quando isso for conveniente ou necessário para seu próprio desenvolvimento e sob certas condições especiais. Uma dessas condições é que o resultado gerado por essas operações não seja distribuído entre os membros (se fosse distribuído, a cooperativa tornar-se-ia uma empresa lucrativa), mas que seja alocado a uma reserva indivisível especial ou para fins de educação cooperativa, de acordo com os estatutos. Consequentemente, as cooperativas podem vender seus serviços a outras pessoas, desde que os membros não se apropriem do produto dessas atividades, o que não afeta, portanto, seu caráter de organização sem fins lucrativos.
Quanto aos elementos que compõem o Ato Cooperativo, já em 1976 especialistas no campo estabeleciam na chamada Carta Jurídica de San Juan que: "O ato cooperativo - analisado através da abstração de notas circunstanciais - contém certos elementos objetivos básicos que caracterizam sua própria natureza, independentemente das definições legais que possam ser formuladas a esse respeito. Em princípio, observa-se a presença dos seguintes elementos que compõem a noção de ato cooperativo:
a. necessidades individuais comuns;
b. objetivo de agir em conjunto;
c. solidariedade;
d. serviço sem fins lucrativos;
e. bem-estar geral." [3]
Dessa forma, as características específicas assumidas pelo relacionamento cooperativa/membro fazem com que ele escape do âmbito do direito comercial e do direito civil e auxilie no nascimento de uma nova figura: "o ato cooperativo", um relacionamento diferente de coexistência, que não implica uma relação de mercado, mas o desempenho de um serviço social. O ato cooperativo é precisamente a célula básica que permite toda a doutrina jurídica da cooperação.
TRATAMENTO FISCAL DAS COOPERATIVAS [4]
Pelo que foi dito, existem alguns critérios específicos que se aplicam às cooperativas em questões tributárias, dependendo dos diferentes impostos.
Quanto aos impostos sobre os ativos, a legislação cooperativa geralmente estabelece a indivisibilidade das reservas e seu destino desinteressado no caso de dissolução da cooperativa. Consequentemente, é propriedade de natureza social, não pertencendo aos parceiros individuais. Por outro lado, o capital aportado pelos associados não possui caráter de investimento para obter lucro, mas é condição para poder utilizar os serviços da cooperativa; tem um caráter meramente instrumental. Além disso, esse capital apenas concede o direito de receber um interesse limitado e não se apropriar dos lucros resultantes da administração da cooperativa, como ocorre em empresas comerciais.
No que diz respeito ao imposto de renda, deve-se destacar que as cooperativas devolvem a seus membros o excedente anual proporcional às operações realizadas por cada uma delas. Portanto, em princípio, cabe a cada um dos parceiros pagar individualmente os impostos sobre o excedente que recebem. No caso de existir um imposto sobre o rendimento comercial – que também é aplicado às cooperativas - deve-se ter em mente que, se a cooperativa for tributada, seus membros não deverão; caso contrário, haveria dupla tributação. Por outro lado, deve-se ter em mente que nas cooperativas o excedente anual é simplesmente um ajuste no preço dos serviços utilizados pelos associados durante o ano, enquanto em uma empresa comercial o lucro é o resultado de uma atividade lucrativa realizada com terceiros. Logicamente, os resultados derivados da prestação de serviços a não-membros devem ter um tratamento diferente, mesmo quando não são distribuíveis.
Por fim, em relação aos impostos sobre as transações, deve-se ter em mente que a operação de cooperativas com seus membros é de natureza singular, uma vez que não há intermediação, mas uma ação comum dos membros organizados em cooperação. Por esse motivo, não é possível falar estritamente de uma transação entre o membro e a cooperativa, mas existe um ato interno (que na legislação dos países do Mercosul é chamado de “ato cooperativo”). Da mesma forma, quando a cooperativa primária realiza operações com sua organização de segundo grau, também não se pode dizer que exista uma transação, pois é um ato interno entre elas. Se essa cadeia de operações não for analisada adequadamente, poderá ocorrer duplicação de encargos com a consequente discriminação em detrimento dos membros da cooperativa que acabariam pagando um imposto mais alto do que aqueles que não o são.
Os aspetos acima mencionados requerem consideração adequada pela legislação tributária, que normalmente não leva em consideração as características das cooperativas, principalmente nos dias de hoje, quando se busca uma uniformidade total das empresas sem levar em consideração sua forma legal. O argumento é que a consideração da atividade econômica realizada deve prevalecer e que não devem ser feitas diferenças que possam afetar a concorrência. Com base nesses argumentos, as cooperativas geralmente são submetidas a um tratamento tributário que pode se mostrar mais desfavorável do que o de outras empresas.
Finalmente, o terceiro princípio cooperativo de participação económica dos membros é definido pela Aliança Cooperativa Internacional nos seguintes termos:
"Os membros contribuem equitativamente para o capital das suas cooperativas e controlam-nas democraticamente. Pelo menos parte desse capital é, normalmente, propriedade comum da cooperativa. Os membros, habitualmente, recebem, se for caso disso, uma remuneração limitada pelo capital subscrito como condição para serem membros. Os membros destinam os excedentes a um ou mais dos objetivos seguintes: desenvolvimento das suas cooperativas, eventualmente através da criação de reservas, parte das quais, pelo menos, será indivisível; benefício dos membros na proporção das transações com a cooperativa; apoio a outras atividades aprovadas pelos membros."
O que esse princípio estabelece é que, quando as atividades da cooperativa geram excedentes, seus membros têm o direito e a obrigação de decidir como devem ser aplicados. Primeiro, fortalecer o desenvolvimento institucional, por meio da formação de uma reserva indivisível, que garanta a viabilidade a longo prazo da entidade e, por sua vez, a sustentabilidade por meio da formação da propriedade social. Mas eles também podem alocá-los a atividades de natureza social entre si ou direcionadas à comunidade, uma vez que o futuro do movimento e o aumento de membros dependem disso.
[1] Dr. Dante Cracogna "As Cooperativas e os Impostos, a experiência do Mercosul".
[2] Lei-Quadro para as Cooperativas da América Latina, aprovada pela XXVIII Assembleia do Parlamento Latino-americano (Parlatino), realizada a 30 de novembro de 2012.
[3] Carta Jurídica de San Juan, II Congresso Continental de Direito Cooperativo, San Juan de Porto Rico 1976, Revista de Idelcoop, Ano 1976, Vol. 3, Nº 11.
[4] Dr. Dante Cracogna, "As cooperativas e os impostos, a experiência do Mercosul"
NOTA: As opiniões expressas nestes artigos são exclusivamente do seu autor e não refletem, necessariamente, a opinião da PromoCoop ou dos seus parceiros.
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